Como uma usina no Ceará pode derrubar a internet no Brasil

Quase 100% do tráfego da internet do Brasil passa pela praia do Futuro, em Fortaleza. Isso porque ela abriga o segundo maior hub do mundo de sistemas ópticos submarinos. E o governo do Ceará pretende construir a maior usina de dessalinização de água do mar do país neste mesmo local.

Para quem tem pressa:

A praia do Futuro, em Fortaleza, concentra quase 100% do tráfego da internet do Brasil – é o segundo maior hub de sistemas ópticos submarinos do mundo;O governo do Ceará planeja construir a maior usina de dessalinização de água do mar do país nessa mesma área, visando fornecer água para cerca de 700 mil pessoas;Empresas de telecomunicação expressam preocupação sobre os possíveis impactos da usina nos cabos submarinos ancorados na praia, enquanto o governo estadual nega riscos e alega que não é possível alterar o local da obra;A construção da usina está aguardando licenciamento ambiental e liberação da Secretaria do Patrimônio da União. A empresa vencedora da parceria público-privada investirá R$ 520 milhões na planta, além de R$ 2,5 bilhões para manutenção e operação por 30 anos;A TelComp, entidade representando empresas de data centers e telecomunicações, argumenta que a usina, se construída na praia do Futuro, colocará em risco os sistemas de telecomunicações, afetando a indústria e empregos relacionados ao setor de TI.

Essa situação causa conflitos de posições. De um lado, empresas de telecomunicação se preocupam com os impactos que essa usina causará, após construída, nos cabos submarinos ancorados na praia. De outro, o governo cearense nega que existam riscos e aponta que não dá mais para mudar o local da obra.

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O Olhar Digital conversou com Luiz Henrique Barbosa – presidente executivo da TelComp, entidade que representa data centers, TV por assinatura e operadoras de telefonia, banda larga e acesso à internet – e contatou a Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará), que faz parte do governo estadual, para entender essa história.

Projeto da usina

(Imagem: Divulgação/Cagece)

O objetivo da usina é fornecer água para abastecer cerca de 700 mil pessoas de Fortaleza e ajudar o Ceará como um todo. Isso porque a água que abastece a capital vem do interior do estado. Ou seja, melhoraria a logística do fornecimento de água.

Atualmente, a obra está em fase de espera de licenciamento ambiental e liberação da Secretaria do Patrimônio da União (SPU). A empresa vencedora da PPP (parceria público-privada) vai investir R$ 520 milhões na planta, mais R$ 2,5 bilhões para manutenção e operação do sistema por 30 anos.

Para o presidente executivo da TelComp, não se trata de discutir o mérito do projeto. “A construção da usina é meritória. Só não deve ser feita onde vai colocar em risco os sistemas de telecomunicações”, disse.

Cabos submarinos na praia do Futuro

Para explicar seu argumento, Luiz Henrique Barbosa deu um panorama do contexto atual:

Os cabos submarinos que conectam o Brasil com o resto do mundo estão concentrados em Fortaleza por uma questão geográfica e até histórica. Há mais de 20 anos que empresas de telecomunicações lançam seus cabos em Fortaleza para conectar com Estados Unidos e, mais recentemente, Europa e África. Hoje a gente fala de transformação digital. Isso quer dizer que o processamento de dados não está mais nos computadores das pessoas, está nas nuvens, que são os data centers, espalhados por todo o planeta.

Conforme explicado pelo presidente da TelComp, a rede de internet tem em seus troncos – e os cabos submarinos são esses troncos – nós de rede muito importantes que não podem correr risco de serem vizinhos de uma estrutura industrial.

Se já existisse uma estrutura industrial na praia do Futuro, ela não seria escolhida pelas redes de cabos submarinos, pelas operadoras, para ancorar os cabos lá. Os data centers que existem lá vão perder certificação. Empresas internacionais vão deixar de colocar seus dados ali na região por conta da existência dessa usina.

Luiz Henrique Barbosa – presidente executivo da TelComp, entidade que representa data centers, TV por assinatura e operadoras de telefonia, banda larga e acesso à internet

Contexto do projeto

Praia do Futuro, em Fortaleza, no Ceará (Imagem: Fábio Lima/Wikimedia Commons)

Barbosa contou que o setor de telecomunicações tem conhecimento do projeto dessa usina há anos. “A gente já manifestou, há muito tempo, o quão inoportuno é fazer esse projeto na praia do Futuro. Mas o governo – a Cagece – insiste”, acrescentou.

Para ele, o governo estadual, ao insistir em construir a usina na praia no Futuro, “joga fora uma oportunidade de Fortaleza se firmar ainda mais como um centro de processamento de dados do mundo”. Hoje em dia, o estado só fica atrás de Marselha, na França, em relação à concentração de cabos submarinos no mundo.

Além disso, o presidente da TelComp afirmou que o projeto da usina pode afetar os milhares de empregos trazidos pelo hub de sistemas ópticos submarinos. Ele disse:

Tem mais de 40 mil empregos de TI que existem no Ceará, que é um destaque neste sentido quando comparado a outros estados do Nordeste. Isso porque empresas de telecomunicações estão concentradas ali. Não faz sentido. Ela [a usina] coloca em risco as estruturas existentes. Não dá para conviver.

Idas e vindas do projeto da usina

(Imagem: Divulgação/Cagece)

A princípio, o projeto da usina de dessalinização previa dois dutos de captação e emissão dos resíduos instalados a 40 e 50 metros dos cabos submarinos. Depois, o governo do Ceará ajustou, atendendo a solicitação do setor. Agora, o projeto prevê que os dutos fiquem a mais de 500 metros.

No entanto, Luiz Henrique Barbosa destacou:

Nada disso adianta se a usina vai ser concebida no meio das Landing Stations. Vai afetar a infraestrutura terrestre dos cabos submarinos. Inclusive, infraestrutura delicada, com alta voltagem. Tem cabos de mais de dez mil volts lá.

Sobre o argumento do governo cearense de que não dá para voltar atrás em relação ao local da obra, o presidente da TelComp disse: “Se não foi construído, dá para voltar atrás. Nada foi construído ainda. Está em fase de projeto, em licenciamento. No nosso entendimento, dá para voltar atrás”.

Outro lado

Entre os pontos reforçados pela Cagece em nota ao Olhar Digital, estão:

O projeto não apresenta nenhum risco ao funcionamento dos cabos submarinos localizados na Praia do Futuro. Em 2022, a Cagece já atendeu a uma solicitação de mudança de 500 metros do ponto de captação, em relação aos cabeamentos. Essa alteração atende às regulações internacionais de proteção dos cabos submarinos. Somente essa modificação deverá representar um aumento na ordem de R$ 35 a 40 milhões para a execução do projeto;Se a usina não for construída na Praia do Futuro, a planta será bem mais cara, pois serão acrescentados gastos com adutoras até os reservatórios de Fortaleza e essas mesmas poderiam cruzar com as fibras ópticas no continente;A Praia do Futuro foi escolhida para receber a planta pois possui água com excelente qualidade, boas correntes marinhas para dispersar o rejeito e é próxima dos reservatórios da Cagece. Tudo isso reduz obras nas vias públicas e gera menor valor de investimento e custeio;A área terrestre da Praia do Futuro convive com redes de água, esgoto, gás, drenagem, energia, cabos de internet e linhas férreas sem nunca ter havido interferência por parte de nenhuma, em relação às outras. A Cagece, por exemplo, realiza há décadas obras e manutenções na área, sem nunca ter causado nenhum dano à operação de cabos de internet;Trata-se de um projeto de segurança hídrica que tem como objetivo diversificar as fontes de abastecimento do Ceará, fazendo com que a distribuição de água não dependa apenas de chuvas. Ele faz parte do Plano de Recursos Hídricos do Ceará e do plano Fortaleza 2040.Os argumentos das referidas empresas não apresentam nenhuma justificativa técnica que inviabilize a construção da planta, que conta com uma série de estudos ambientais. Foram cumpridos todos os processos de criteriosos estudos técnicos, consultas e audiência pública para garantir a transparência e participação de entidades e sociedade civil;Para a Cagece, toda essa mobilização só demonstra que as empresas de telecomunicações que atuam na Praia do Futuro não levam em consideração os impactos para o povo de Fortaleza. Ao contrário, se unem para praticar no local uma espécie de reserva de mercado, pois não existe nenhuma legislação que indique que Praia do Futuro é reservada apenas para cabos submarinos;O que a Cagece manifesta neste momento é o posicionamento claro acerca de uma política pública em defesa do acesso à água para a população.

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